terça-feira, julho 17, 2012

Estará o Tribunal Constitucional a apelar à revolta armada?

por José Vítor Malheiros

Gostávamos de imaginar que havia no sistema judicial uma reserva de direito que se preocupava com a justiça

Não sei se o acórdão do Tribunal Constitucional relativo à suspensão dos subsídios de férias e de Natal para a função pública tem paralelo na história recente da jurisprudência, mas é provável que tenha. O direito, que tanto prezamos quando imaginamos o que ele deve e pode ser, temnos brindado com as maiores aberrações da história, da escravatura ao apartheid e da lapidação das mulheres violadas ao extermínio étnico. E, sem chegar a esses extremos, a administração da justiça em Portugal presenteia-nos todos os dias com histórias de ignomínia capazes de fazer corar de vergonha um proxeneta. São os pequenos crimes (roubo de um chocolate, de um shampoo) punidos com severidade. São as crianças maltratadas e institucionalizadas que são “reinseridas na família biológica” para poderem ser maltratadas de novo, em nome de um biologismo que poderíamos classificar como típico de um neanderthal, se não tivessem sido recentemente descobertas provas de um temperamento artístico nos neanderhtais que revelam uma elevação espiritual difícil de encontrar nas decisões dos tribunais. São os poderosos que se escapam sistematicamente das malhas da justiça, sempre na maior legalidade, sempre em nome das garantias fundamentais que são todos os dias negadas à maioria da população. São os pequenos contribuintes que vêem os seus bens penhorados e as suas casas confiscadas devido a pequenas dívidas ao fisco, enquanto os grandes devedores vêem as suas dívidas perdoadas ou assumidas por um banco que será resgatado graças aos impostos pagos pelos mesmos pequenos contribuintes.

A lista é infindável, mas há suficientes exemplos a saírem nos jornais para nos lembrar que existe uma justiça para os ricos e poderosos e outra para os que vivem do seu trabalho e não estão nas graças dos partidos do chamado “arco do poder”. Por isso, pareceme provável que existam muitas sentenças e muitos acórdãos do calibre deste que agora saiu das cabeças dos mais poderosos magistrados da nação.

É verdade que gostávamos de imaginar que havia algures, no sistema judicial, uma reserva de direito que se preocupava de facto com a justiça, uma reserva de direito preocupado com princípios tão antigos como a equidade, a liberdade, a separação de poderes, a decência, a dignidade, a coerência e a verdade e, ingenuamente, muitos de nós imaginámos que ela pudesse existir no Tribunal Constitucional. Mas parece que não é assim.

Penso que é possível encontrar bons e honestos argumentos para defender a constitucionalidade dos cortes dos subsídios aos funcionários públicos ou o seu contrário – por muito que a medida me pareça não apenas profundamente injusta mas também ditada por uma lógica de destruição voluntária de direitos dos trabalhadores, que o actual Governo tem vindo a prosseguir de forma sistemática. Mas penso que, se se admitir a (falsa) “inevitabilidade” de cortar nos salários, é possível encontrar argumentos para defender este corte que o Governo fez ou, inversamente, para o considerar inconstitucional, como o TC fez, por discriminar negativamente os trabalhadores do Estado. A minha crítica ao TC não diz respeito a este facto.

O que não é possível é o TC considerar o corte inconstitucional mas admiti-lo mesmo assim até ao fim do ano, numa “suspensão da Constituição” na linha da suspensão da democracia que Ferreira Leite sugeriu e que o Governo tem vindo a pôr em prática. Com esta decisão, insustentável do ponto de vista do direito e da lógica, o TC não mete apenas a Constituição na gaveta, mas alinha no combate político em prol do Governo e ao lado do PSD e do CDS. Se se quisesse demonstrar a parcialidade do TC (o mesmo é dizer a sua inutilidade), não se podia fazer melhor.

Mas também é possível que isto não seja assim. Outra leitura possível é que o TC tenha plena consciência de que a situação bateu no fundo, que a descredibilização das chamadas “instituições democráticas” é total, que a legitimidade do Governo é insustentável, que as eleições já não conseguem traduzir a vontade do povo nem os partidos querem interpretá-la e assumi-la.

Talvez o TC tenha querido mostrar ao povo como é infundada a sua fé no sistema, como é disparatada a sua esperança de que alguma instância estatal assuma a defesa da justiça e da comunidade. Talvez o TC tenha querido enviar um sinal ao povo, demonstrarlhe que não existe nenhum obstáculo entre o presente e a barbárie, que a lei não é uma defesa contra a arbitrariedade.

Talvez o TC tenha querido mostrar que as “instituições democráticas” não conseguem defender os direitos dos cidadãos e que a revolta armada é a única solução. Talvez o acórdão pretenda apenas mostrar aos cidadãos que a via da legalidade democrática como forma de gerar alternativas políticas está esgotada. Se for assim, o acórdão tem lógica. Poderemos discordar dele, mas a coerência entre o objectivo e o instrumento será total.