quarta-feira, junho 21, 2006

Mudam-se os tempos, repetem-se os sentimentos...

Civilização sem Riso
Eu penso que o riso acabou - porque a humanidade entristeceu. E entristeceu - por causa da sua imensa civilização. O único homem sobre a Terra que ainda solta a feliz risada primitiva é o negro, na África. Quanto mais uma sociedade é culta - mais a sua face é triste. Foi a enorme civilização que nós criámos nestes derradeiros oitenta anos, a civilização material, a política, a económica, a social, a literária, a artística que matou o nosso riso, como o desejo de reinar e os trabalhos sangrentos em que se envolveu para o satisfazer mataram o sono de Lady MacBeth. Tanto complicámos a nossa existência social, que a Acção, no meio dela, pelo esforço prodigioso que reclama, se tornou uma dor grande: - e tanto complicámos a nossa vida moral, para a fazer mais consciente, que o pensamento, no meio dela, pela confusão em que se debate, se tornou uma dor maior. O homem de acção e de pensamento, hoje, está implacavelmente votado à melancolia.

Este pobre homem de acção, que todas as manhãs, ao acordar, sente dentro em si acordar também o amargo cuidado do pão a adquirir, da situação social a manter, da concorrência a repelir, da «íngreme escada a trepar», poderá porventura afrontar o Sol com singela alegria? Não. Entre ele e o Sol está o negro cuidado, que lhe estende uma sombra na face, lhe mata nela, como a sombra sempre faz às flores, a flor de todo o riso. Por outro lado o homem de pensamento que constantemente, pelo fatalismo da educação científica e crítica, busca as realidades através das aparências, e que no céu só vê uma complicada combinação de gases, e que na alma só descobre uma grosseira função de órgãos, e que sabe que porção de fosfato de cal entra em toda a lágrima, e que diante de dois olhos resplandecentes de amor pensa nos dois buracos da caveira que estão por trás, e que a todo o sacrifício heróico penetra logo o motivo egoísta, e que caminha sempre à procura da lei estável e eterna, e que a cada passo perde um sonho, e que por fim não sabe para onde vai, e nem mesmo sabe quem é - não pode ser senão um triste!
Eça de Queiroz
in «A Decadência do Riso», Gazeta de Notícias (1891)

4 Comments:

At 8:53 da manhã, Blogger isabel mendes ferreira said...

pode tudo acabar....que não acaba a minha admiração por ti....pelo que combates.



Bom dia Su.

abraço.

 
At 8:54 da manhã, Blogger isabel mendes ferreira said...

e não fiques triste....por enquanto sobra o lado do mar...:)

 
At 8:52 da manhã, Anonymous Anónimo said...

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