terça-feira, outubro 04, 2005

Presidenciais: um imenso vazio

Por Jorge Ferreira, no tomarpartido

Mais uma vez o país se vai iludir nas próximas eleições presidenciais. Pelo andar da carruagem já se percebeu como vai ser o debate. Os problemas fundamentais do regime, das instituições e da sociedade, que todos passam a vida a dizer que é necessário enfrentar, vão ficar à margem do suculento debate que se aproxima. Mário Soares já decretou que este não será um combate ideológico e o seu adversário terá ficado aliviado com a ideia de não ter de fazer um debate ideológico com Soares.
Com quem gostaria que o seu filho tivesse aulas? Com quem preferia jantar? A quem emprestava o seu carro? A quem pedia ajuda na matemática? Quem gostava que fosse seu professor? Com qual preferiria passar um serão à lareira a ouvir histórias? Quem gostava que tratasse da sua contabilidade pessoal? As repostas variarão consoante os casos: Soares ou Cavaco, Cavaco ou Soares.
Este é o terreno que está preparado para o debate presidencial. É o debate dos perfis. Naturalmente apimentado com o lado emocional da política, que será meticulosamente atiçado por falsas polémicas e falsas divergências.
Cavaco Silva e Mário Soares são muito mais parecidos do que parecem e querem o mesmo de muito mais coisas do que jamais admitirão. A candidatura de Mário Soares e a candidatura de Cavaco Silva são duas faces da moeda, de um sistema que ajudou a salvar o país das ditaduras, mas que o tem condenado, nos últimos 25 anos, a uma outra espécie de ditadura: a democracia de fachada. E se na primeira face apenas participou Soares, já na segunda ambos registaram direitos de autor.
As presidenciais disputam-se num momento em que o desencanto dos portugueses com o sistema partidário, político, económico e social nunca foi tão grande. O ambiente é o ideal para a projecção de uma ilusão presidencial. A ilusão de que os homens em quem se vai votar em Janeiro virão salvar Portugal do défice, ou o Iraque da guerra, ou o mundo do terrorismo. Nada mais enganador.
Tomemos dois exemplos: o sistema institucional e a Europa.
É de bom tom pensar que Mário Soares é menos autoritário, menos interventivo e mais conciliador do que Cavaco Silva. Já será politicamente correcto pensar que Cavaco acentuará o pendor presidencial do semipresidencialismo e que Soares preferirá o pendor semi ao pendor presidencialista do semipresidencialismo. Mas será assim? Definitivamente não. Nem era de esperar que fosse. No essencial ambos concordam com este sistema. E para quem tivesse dúvidas tê-las-á certamente resolvido no sábado passado ao ler o artigo que Cavaco Silva, preventivamente, fez publicar no Expresso e em que faz uma profissão de fé no semipresidencialismo.
Isto é, quanto ao essencial do sistema, tudo continuará exactamente na mesma com Cavaco ou com Soares.
E quanto à Europa, que se tornou hoje um problema de política interna de todos e de cada um dos Estados europeus? Haverá diferenças de pensamento e de acção entre cada um dos candidatos? Também não. Ambos são federalistas, ambos têm crédito e curriculum firmes na defesa do modelo de Europa de que os cidadãos estão cada vez mais longe, como se tem visto nos últimos referendos sobre a Constituição europeia. Que ambos, aliás, apoiam e de que suponho não terem entretanto desistido.
Numa palavra: o que poderá eventualmente distinguir Soares de Cavaco é a circunstância, não a essência. Ambos querem representar ao mais alto nível um regime que os satisfaz, de que são, cada um à sua maneira, co-autores e o mais que desejam é uma consagração política dourada.
Cada um trará consigo os oportunistas do costume, a corte de Abranhos recachutada e com visual século XXI, que se afadigarão a discutir com ciência e pose qual deles será melhor ou pior para Sócrates, se saber muito de Finanças é recomendável ou indispensável para as conversas de quinta-feira com o Primeiro-Ministro, se um é mais parecido com Salazar do que o outro com Kerenski.
No fundo a história vai repetir-se: os eleitores serão chamados a votar numa eleição para eleger o símbolo vivo da República, em cujo arsenal jaz uma bomba atómica, o poder de dissolução do Parlamento, mas onde não existem fisgas, pistolas, espingardas, tanques, aviões ou barcos.
Depois de Janeiro o país será de novo confrontado com o vazio. Passado o ciclo das três eleições e, eventualmente, do referendo sobre o aborto que o PS quer fazer a saca-rolhas, Portugal será novamente confrontado com um sistema desacreditado e esgotado, que terá em Belém mais um fiel intérprete.
(publicado na edição do Expresso do último sábado)